No romance “O Homem que queria ser Rei”, o indiano Rudyard Kipling conta a história de dois aventureiros britânicos que vão até o Kafiristão, uma das últimas regiões do Afeganistão não convertida ao islamismo no final do século 19, com a ambição de se tornarem reis.
Um deles se destaca pela coragem e pelo desprezo aos ídolos locais. Alvejado por uma flecha (que de fato não o atinge), ele termina sendo visto como uma reencarnação de Alexandre O Grande. É coroado como um rei divino. Embevecido com as adorações da população, o aventureiro começa aos poucos a acreditar que realmente é divino. Ele decide se casar para ter uma linhagem de reis, mas na cerimônia de casamento a escolhida, aterrorizada com a ideia de dormir com um deus, o morde no lábio. Ele sangra e os sacerdotes chocados descobrem que ele “não é um deus, não é um diabo, mas apenas um homem”. Atacado pelos antigos fiéis, o homem que queria ser rei é jogado pela turba enfurecida de uma ponte e morre. O segundo britânico foge e carrega dentro de um saco a cabeça do amigo ainda coroada.
Sergio Moro foi a personalidade brasileira mais importante dos últimos anos. Teria sido eleito presidente em 2018. Dias atrás, perguntado sobre o motivo que o fez aceitar ser o ministro da Justiça de Bolsonaro, o ex-juiz Sergio Moro respondeu a um interlocutor que acreditava (e segue acreditando) que só poderia modificar as regras institucionais de dentro do governo. Na sua resposta, Moro citou várias vezes a Operação Mãos Limpas, que depois de revelar um propinoduto entre políticos de todos os partidos italianos, terminou melancolicamente enterrada. Dentro da estrutura de poder, argumentou Moro, seria possível reforçar as normas de controle da União, aprovar leis aumentando penas e transformando a experiência da Operação Lava Jato em regra para o país inteiro. A conversa mostrou um Sergio Moro entre o messiânico e o mitômano.
Moro fora da ordem
Para ser ministro, Moro entregou a Bolsonaro a sua credibilidade e, em troca, recebeu seguidas ameaças de demissão. Para permanecer no cargo, tem se humilhado em defesa do chefe, seja em elogios ao estrambólico discurso na ONU, seja na quebra do sigilo do inquérito da Polícia Federal sobre o PSL para afirmar publicamente que a investigação não envolve o presidente. É sabujice.
Mesmo os diálogos das conversas com os procuradores não afetaram a popularidade de Moro. Parte porque muitos de seus admiradores consideram que contra o PT vale tudo, parte porque muitos consideram que a corrupção é um crime maior que a parcialidade nas investigações. Qualquer pesquisa ainda mostra Moro mais popular que Bolsonaro.
Mas ele está diminuindo de tamanho a olhos vistos. Levantamento da DAPP-FGV mostra que de julho a setembro o número de citações ao ministro caiu de 9,3 milhões para 2 milhões, parte pelo esfriamento do escândalo da Vaza Jato, mas também pela falta de protagonismo.
A bandeira da anticorrupção sempre foi popular no Brasil, mudando apenas quem a carregava. Já foi a base do movimento tenentista, da UDN, de Jânio Quadros, dos militares de 64, de Collor e do PT dos anos 90. Moro é um símbolo muito mais forte dessa campanha, até pelos anos de envolvimentos do presidente e seus filhos em rachadinhas, milicianos e funcionários fantasmas. Mas a história mostra que a bandeira troca de mãos. Moro corre o risco de terminar sem reino e sem cabeça.
Foto: Cristiano Mariz