A atriz Taís Araújo é a nona entrevistada da série “Década de Rupturas” e conta por que está em processo da reconstrução da identidade negra.
Nascida no Méier, criada na Barra, filha de um economista e uma pedagoga, a atriz Taís Araújo se define no meio de um processo de descobrimento e afirmação de sua identidade negra. Dos primeiros cabelos crespos em novela das 21h à personagem Michele Brau, Taís se diz um veículo para interpretar personagens sob a ótica negra. “Quero pegar essas histórias que me foram negadas a vida inteira, desmerecida a vida inteira e as transformar numa coisa boa”, diz.
A primeira pergunta de quase toda entrevista sua começa com “você foi a primeira atriz negra a.., a primeira modelo negra a… ”. Qual é o peso de ser a primeira?
Durante muito tempo não queria tocar nesse assunto. Mas com a maturidade entendi que isso tem importância. Qual era a referência negra que tive na minha infância e adolescência? Nenhuma. Tenho essa lacuna na construção da minha identidade, porque não via ninguém com as minhas características ocupando vários lugares. Talvez esteja me tornando essa pessoa que abre caminho para outras.
Você se sente um exemplo ou ainda a grande exceção?
As duas coisas. Tem a questão das meninas olharem para mim e se sentirem possíveis, mas a minha história pessoal é de exceção. Meu pai é economista, minha mãe é pedagoga. São os únicos da família da faixa etária deles que tem curso superior. Isso foi um diferencial gigantesco na minha família. A educação dos meus pais é que fez a transformação. A minha irmã é médica, eu sonhava em ser diplomata e sou atriz. Quando olho as mulheres parecidas comigo, a maioria esmagadora não teve as possibilidades que eu tive. E minha irmã é uma completa exceção na área dela.
Na linha da primeira atriz negra, você foi quem colocou os cabelos crespos na novela das nove. A transição capilar virou um símbolo de afirmação?
A minha mãe passou henê no cabelo da minha irmã quando ela tinha 3 anos. Ela só soube como era o cabelo dela de verdade aos 47! Como meu cabelo era menos crespo, passei depois pela fase do alisante e só comecei a transição capilar por acidente. Eu usava um aplique em uma novela, caiu uma mecha, fiquei com medo e me assumi.
Mas hoje entendo que assumir o cabelo do jeito que ele é, apropriar-se das suas origens, é honrar sua ancestralidade. Porque a história do Brasil é o tempo todo a negação de ser brasileiro. Desde os povos indígenas, até as pessoas que foram sequestradas no continente africano e trazidas para serem escravizadas, a história é negar, negar, negar as nossas origens o tempo inteiro.
O cabelo alisado era uma negação?
Toda questão é pertencimento. As pessoas querem pertencer. Até muito tempo atrás — ainda hoje só que com uma tomada de consciência maior — só poderia pertencer quem tivesse traços europeus. Num país tão misturado como o nosso, se você tem um nariz mais próximo das pessoas do continente europeu, se tem uma boca fina ainda assim te olham. Mas se você tem um cabelo liso, você passa, amor. Quanto mais liso seu cabelo, mais perto do ideal branco você está. O cabelo é uma forma de diferenciar. Passou nessa fileira. Ufa, passei, agora vou pra uma outra, vou ver qual a próxima página.
Não ceder a essa pressão é uma conquista. Entender esse nariz, esse cabelo, essa cor, essa origem. Porque são anos negando as origens, uma vida inteira desqualificando o negro, dizendo que é ruim, feio, que o legal é ser branco. E você nunca vai ser branca.
Como foi esse seu processo?
Estou num processo de construção da minha identidade negra, porque a minha identidade real me foi negada muitos anos. Essa construção inclui me aceitar como eu sou, honrar quem veio antes de mim, tentar preencher essa lacuna lendo pensadores negros. Entender o que eles passaram. É tijolinho, por tijolinho. Todo livro que sai escrito por um negro ou por uma mulher negra, eu leio, coloco mais um tijolinho.
Quando olha para mim, imediatamente, a pessoa olha para minha cor e imagina que tive uma infância paupérrima e que batalhei muito e que arrastei muita corrente para estar aqui. Porque se não tiver esse background, não sou merecedora. Aí você é metida.
Uma vez, ouvi uma pessoa que trabalhou comigo “nossa, não conheço nenhum negro bem-sucedido que não seja pretencioso”. E eu, “vem cá, Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais? Ou é você que não está acostumada a ver negros em posições em que são de embate, de igual para igual, só em posição de subserviência e, quando vê, acha que é prepotência?”. A pessoa não me respondeu até hoje.
Nasci no Méier e cresci na Barra em um ambiente absolutamente branco e rico. E eu não era nem uma coisa, nem outra. Meu pai era economista de uma dessas construtoras e pagava muito mal a minha escola, mas meus amigos tinham motorista, aviões, iates, casas em Angra. Era um mundo de não pertencimento o tempo inteiro.
Essa construção de identidade mudou a sua carreira?
A Helena (personagem que interpretou em Viver a Vida, em 2009) foi importante. Quando o (autor da novela) Manoel Carlos falou “a questão não é ser negra, a questão é ser mais jovem”, eu ingenuamente acreditei. E hoje vejo que não tem como você não falar sobre o seu histórico. Era a chance de olhar para história com maturidade e entender como é que aquela Helena, uma mulher negra, modelo internacional, rica, chegou naquele lugar.
Porque, se a personagem fosse branca, você não teria que explicar
Sim, como é que a maioria da população vai se identificar com uma história que não é possível para ela? Uma história que não conhece, não é a dele, do vizinho dele, do primo dele. Depois da novela é que entendi que precisava me reinventar enquanto artista. Entendi que o que eu tinha feito até ali havia caducado.
Como foi essa reinvenção como atriz?
Assim como a Alice no País das Maravilhas, eu tinha que diminuir para poder crescer. Eu tinha de recuar e me entender e arriscar. Montei uma peça chamada “Amores Perdas e meus Vestidos” do Jô Bilac. E eu me perguntava “o que que tenho de diferente dessas pessoas do elenco? ” Era um elenco todo branco. “Eu sou negra e isso é um ganho nas minhas personagens. Vou trazer para o palco a minha história, e também a da minha mãe, da minha tia, da minha avó, da minha vizinha, a história dessas mulheres que nunca foram contadas”. Foi então que comecei a ler autoras negras, para pegar essas histórias que me foram negadas a vida inteira, desmerecidas a vida inteira e as transformar numa coisa boa.
Primeiro entendendo que essa história me foi contada de maneira distorcida. Depois fazer um trabalho quase espiritual de pedir desculpas por não ter entendido que tudo o que essas mulheres passaram não foi passividade, foi resistência. E finalmente me deixando ser o veículo dessas histórias, que são quase todas inéditas na dramaturgia. Por isso insisto tanto em ter autores negros, atores negros, diretores negros, porque essas pessoas estão carregadas de histórias vistas por um ponto de vista que não foi contado ainda. Esse processo é o da construção da minha identidade.
A série Mister Brau (protagonizada por Taís e Lázaro Ramos) tem uma evolução nítida sobre a presença negra na TV a partir da segunda temporada
O público quer se ver na TV. Eu e o Lázaro fomos o veículo, mas a gente foi abrindo espaço para tornar a série mais brasileira. Todo mundo tinha voz nas decisões. Vou contar uma história: um dia, um diretor de arte colocou um prato pesado numa cena que parecia uma quentinha. Falei, “ah, esse prato não é legal”. “Mas como, tem formato de quentinha e eles (os personagens principais) vieram de Madureira?”, ele respondeu. Daí, eu levantei: “você acha que o povo gosta de comer quentinha? Você acha mesmo que a pessoa gosta de sair de Japeri, cinco horas da manhã, no trem, atravessar a cidade inteira, trabalhar debaixo de sol, e correr o risco de meio-dia a quentinha dele estar azeda? Comer quentinha é legal na Zona Sul, com salada de quinoa”. Isso era a minha Michele Brau, uma personagem que andou muito de metrô, mas não quer revisitar o pior da minha origem. Quer visitar o melhor da sua origem, feliz com as suas qualidades, não querendo ser o que o outro é.
A sua última peça, Topo da Montanha, reconta a última noite do líder americano Martin Luther King, debate o racismo americano de 50 anos atrás. Qual a diferença com o racismo brasileiro de hoje?
Tem tanta coisa mais parecida do que diferente, né. Mas a peça não é só sobre a questão racial. Ela reforça as nossas escolhas enquanto artistas (dela e de Lázaro Ramos). Eu sou a favor do afeto, porque não acredito no discurso violento. Então, manter essa peça, tem uma coisa que alimenta as minhas escolhas. E a temporada foi toda lotada, porque tem muita gente querendo discutir o tema, uma tomada de consciência bonita. É um processo que o Brasil ainda não chegou, de maturidade. De olhar pra sua história de maneira madura e crítica. Tirar aquela coisa de brasileiro cordial. Parar de tratar o Brasil-colônia com glamour, sabe?
Qual foi o efeito da morte da vereadora Marielle Franco?
Medo, porque mostra a nossa vulnerabilidade de mulher negra. Mas este é um medo que não paralisa, é um medo que dá potência para continuar cobrando justiça.
Como lidar com o ódio na internet?
Quando aconteceu o caso das ofensas racistas no Facebook (em 2015), eu vi como as pessoas não-negras da minha equipe ficaram arrasadas, com vergonha. E eu respondia, “gente, essa é minha vida desde o dia em que eu nasci”. Os ataques que sofri não dizem respeito a mim. Dizem respeito às pessoas que atacaram, às origens delas, sobre os medos de perder seus privilégios.
No outro ataque era sobre uma palestra na qual você falava do risco de qualquer garoto negro no Rio.
Os meus filhos são absolutamente privilegiados. A gente mora na Zona Sul do Rio de Janeiro, e eles estão “protegidos” enquanto estiverem dentro do carro blindado. Agora, quando ele estiver na rua, é um menino igual a qualquer menino que está sem camisa na rua vendendo bala no sinal. A vida de um menino negro vale pouco.
Qual o próximo passo da sua construção de identidade?
Peguei a gestão de 100% da minha carreira tanto artística, quanto comercial. Eu vou ler contrato, vou lidar com dinheiro. Porque eu construí essa carreira durante vinte e quatro anos. Eu também sou uma marca – e vou decidir quem eu quero associar à minha marca. Os bancos, por exemplo, têm muitos projetos ligados à mulheres empreendedoras. Eu quero dizer isso simplesmente, eu quero conhecer essas mulheres, contar as histórias delas. Vai dar muito trabalho, mas também muito prazer.
Taís Araújo na última década
2012
Versátil
Protagoniza a novela “Cheias de Charme” na qual atua também, pela primeira vez, como cantora.
2015
Internacional
Protagoniza, com Lázaro Ramos, a série “Mister Brau”. O jornal inglês “Guardian” compara Lázaro e Taís ao casal Jay Z e Beyoncé.
Ataque
Sofre ataques racistas no Facebook. A hashtag em apoio à atriz, #SomostodosTaisAraujo, chega a ser trending topic no Twitter.
2017
Reconhecimento
É eleita uma das 100 personalidades afrodescendentes mais influentes do mundo, abaixo dos 40 anos, pela organização Mipad.
2018
Música
Assume o comando da apresentação do reality show “Popstar”, principal programa musical da TV Globo.
2019
Nas telas
Protagoniza a série Aruanas (Globoplay). Está no ar como uma das protagonistas da novela “Amor de Mãe” e do programa “Popstar”.
Publicado no jornal O Globo no dia 23/12/2019
https://oglobo.globo.com/brasil/decada-de-rupturas-medo-nao-paralisa-da-potencia-diz-tais-araujo-24154788i
Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo