22 de dezembro de 2024
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Dilma Rousseff contou a história tantas vezes que, quando a repetia, os assessores rapidamente se distraíam checando mensagens no celular. “Em 2005”, dizia Dilma, recordando seus tempos de ministra da Casa Civil, “um burocrata foi até o Palácio e me disse que tinha uma grande notícia: o FMI havia autorizado o governo federal a investir R$ 500 milhões no saneamento.”

Carval

Ao discursar, a presidente sempre sublinhava a palavra burocrata. Ela, então, levantava a voz e exclamava: “R$ 500 milhões! Veja só, isso hoje é o que investimos em saneamento numa só cidade e era o que o FMI autorizava a gente a destinar para o Brasil inteiro. Hoje não tem FMI para dizer onde a gente pode ou não pode investir”. O burocrata, nunca nominado, era Joaquim Levy, então secretário do Tesouro do Ministério da Fazenda.

Quase dez anos depois, quando convidou Levy para o Ministério da Fazenda em meio a uma abissal crise de credibilidade, a presidente sabia bem quem estava trazendo para a equipe. Levy sempre seria um estranho no ninho, uma concessão, um burocrata, o Joaquim Mãos de Tesoura, capaz de compreender de Orçamento, mas não da urgência de investimentos em saneamento.

Justiça seja feita, Levy nunca fingiu ser algo diferente. Nas reuniões ministeriais, nas quais costumeiramente só aparecia depois da presidente, ele sempre achava um momento para lembrar aos demais da profundidade do rombo nas contas públicas. Nas conversas privadas, era menos sutil.

Depois de ouvir a longa exposição de um colega sobre o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) ter sido um dos pilares da campanha da reeleição e, por motivos simbólicos, ter de ser excluído dos cortes orçamentários, Levy respondia como se falasse com uma criança de cinco anos que chorasse por um sorvete: “É, mas não tem dinheiro”.

Noutra ocasião, um ministro falou da necessidade de o governo socorrer os clubes de futebol. Como Levy não se enternecia, o interlocutor apelou para o time do coração de Levy: “Sem essa medida, o Botafogo vai quebrar”, apelou o ministro. “Poxa, que pena”, retrucou Levy, sem alterar a voz.

Das características singulares do presidencialismo brasileiro, uma das mais delicadas é a relação entre o chefe do Executivo e o seu ministro da Fazenda. Emílio Garrastazu Médici está para Delfim Netto como Ernesto Geisel estava para Mário Henrique Simonsen. Itamar Franco só entrou para a história ao nomear Fernando Henrique como ministro e este, quando presidente, demitiu amigos para manter intacta a autoridade de Pedro Malan na política econômica.

O governo Lula pode ser descrito como antes e depois de Palocci e o primeiro mandato de Dilma não poderia ser descrito sem que seja relatada a sua intervenção constante nas atividades de Guido Mantega.

Por tudo isso, Dilma e Levy formam uma dupla tão inesperada. Um reconhece no outro as melhores intenções, mas ambos discordam de quase tudo o mais. Desde novembro, quando Levy foi anunciado ministro, o governo federal funciona na errática relação entre a presidente detentora de 54,5 milhões de votos e o ministro fiel depositário da confiança do mercado financeiro.

É a sístole e diástole da dinâmica de Dilma e Levy que explica a transformação de um Orçamento deficitário em agosto em um pacote que promete cortar R$ 26 bilhões em despesas correntes em setembro, dinâmica na qual os vazamentos à imprensa das insatisfações da chefe com o subordinado se pagam com o vazamento das frustrações do subordinado com a chefe.

São conhecidos os males que alimentam a ameaça de impeachment: articulação política inábil, comunicação desastrosa, paralisia administrativa e a sinalização mercurial dos rumos do governo. Porém, mais que o avanço das investigações da Operação Lava Jato, dos julgamentos do Tribunal de Contas da União e do Tribunal Superior Eleitoral e das idas e vindas do PMDB, o ritmo do processo do impeachment será dado pelo bolso do cidadão.

São os índices de desemprego, inflação e queda no consumo que podem derrubar o governo, que podem levar milhões às ruas, gerar pânico no mercado financeiro e esfarinhar de vez a base governista. Por ironia do destino, Dilma depende do sucesso do burocrata para chegar presidente a 2018.

THOMAS TRAUMANN, 48, jornalista, foi ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (governo Dilma)

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