Ex-comandante do Exército relata detalhes da tensão às vésperas do impeachment de Dilma, da divulgação dos áudios de Temer e da prisão de Lula; relembra pressão por intervenção militar e descarta medidas como o AI-5
Comandante do Exército nos governos Dilma Rousseff e Michel Temer, o general Eduardo Villas Bôas faz, nesta primeira entrevista da série Década de Rupturas, a avaliação de que o país correu risco institucional entre o impeachment e a divulgação dos diálogos da JBS. “Fiquei bem preocupado”, disse, a respeito das reações dentro e fora dos quarteis quando os áudios com Temer vieram a público. O general de 68 anos conta que elaborou teses baseadas na Constituição e na estabilidade dos Poderes para circunscrever a ação do Exército em uma eventual crise institucional.
Vítima de uma rara doença neuromotora de caráter degenerativo, Villas Bôas respira com ajuda de aparelho e se locomove em cadeira de rodas. Ele conversou com O GLOBO por quase duas horas em sua casa, em Brasília, semanas antes de se submeter a uma traqueostomia. “Quando Deus quer ter uma conversa particular com você, ele te dá uma doença assim”.
Houve algum risco de decretação de “Estado de Defesa” durante o impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Esse episódio ganhou uma versão que não é totalmente verdadeira. Ao longo do processo de impeachment, dois parlamentares de partidos de esquerda procuraram a assessoria parlamentar do Exército para sondar como receberíamos a decretação de um “Estado de Defesa” (possibilidade constitucional na qual o presidente decreta por 30 dias situação emergencial restringindo direito de reunião e de comunicação). Confesso que fiquei preocupado, porque vi ali uma possibilidade de o Exército ser empregado contra as manifestações. Contudo, corre uma versão de que a presidente Dilma teria me chamado e determinado a decretação do “Estado de Defesa”, e eu teria dito que não cumpriria. Isso não aconteceu. Mas que houve a sondagem, ela de fato houve.
Houve algo além da sondagem?
Não. Absolutamente.
Ao longo do processo de impeachment, o senhor como Comandante do Exército elaborou uma tese com os três pilares sobre as circunstâncias nas quais as Forças Armadas poderiam ser convocadas. Quais são?
Isso surgiu quando, nas vésperas do impeachment, o presidente Temer chamou a mim e ao general Etchegoyen (Sérgio Etchegoyen, ministro do GSI no governo Temer) e perguntou qual seria a reação do Exército no caso do impeachment. Eu disse: “O Exército vai cumprir a Constituição”. Naquele momento havia muitos movimentos pedindo intervenção militar.
Falei ao presidente Temer dos três pilares. O primeiro é o da legalidade. Uma instituição de Estado não pode nunca atuar fora desse preceito, até porque já tinham lições aprendidas com a História, não é? E o Exército poderia até ser empregado, mas de acordo com a Constituição, conforme consta no artigo 142 (que diz que a pedido do Executivo, Legislativo ou Judiciário, as Forças podem ser empregadas para assegurar a lei e a ordem).
Outro aspecto é o da estabilidade. Se o país estiver em um momento conturbado, poderíamos agir para manter a estabilidade nacional para que as instituições funcionassem. E o terceiro aspecto é o da legitimidade, um preceito construído pelo Exército ao longo de muitos anos. Ademais, se eventualmente o Exército fosse chamado, era preciso estar caracterizado da sua imparcialidade como instituição de Estado que jamais se submeteu a pressões políticas. A minha resposta era que o Brasil hoje é um país de instituições já com seus espaços, seus limites de atuação definidos. Nós temos um sistema de pesos e contrapesos que dispensa da sociedade de ser tutelada.
Esses três pilares foram muito úteis, tanto diante das pressões para intervenção, como também pra tranquilizar o público interno do Exército. Esse pilares viraram uma espécie de linha de atuação.
Em 2017, quando o presidente Temer foi grampeado naquela conversa indecorosa com o empresário Joesley Batista, o senhor foi no Twitter e publicou que “não há atalho fora da Constituição”. Naquele momento havia algum risco institucional?
Eu senti. Fiquei bem preocupado.
Em abril de 2018, quando o Supremo discutia a possibilidade do habeas corpus para evitar a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o senhor escreveu no seu Twitter: “Nessa situação em que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado com interesses pessoais”. O STF acabou concluindo por recusar o HC do ex-presidente. O senhor acha quer alterou a votação do Supremo?
Sinceramente, não acredito que a ministra Rosa Weber tenha mudado o seu voto em função da minha declaração. Foi uma preocupação que se desencadeasse um processo de impunidade, que a palavra-chave desse tuíte foi impunidade. E também teve a intenção, primeiro de manifestar o pensamento do Exército e, segundo, também de conformidade com a vontade da população. Eu sabia que havia riscos desse tuíte, tanto que no dia seguinte o ministro Celso de Mello (decano do STF) nos chamou de “pretorianos”. Eu sabia que alguma reação corporativa deveria haver e até achei que ficou barato.
Quando o senhor revê esses episódios encadeados, havia risco de retrocesso institucional?
Acho que risco de retrocesso institucional, pelo menos naquele momento (julgamento de Lula), não havia, mas temia que aqueles acontecimentos desencadeassem uma instabilidade de ordem pública que, aí sim, pudessem levar para… Nós tínhamos na memória as manifestações de 2013, algo que esteve na iminência de fugir ao controle. Então o Twitter teve um caráter preventivo.
Em outubro, o deputado Eduardo Bolsonaro falou em AI-5 como reação a uma suposta radicalização da oposição e, em novembro, o ministro Paulo Guedes foi na mesma toada. Qual a sua avaliação?
O Brasil hoje é um país que conta com instituições amadurecidas, portanto dispensa o uso de mecanismos não constitucionais.
O senhor enxerga risco de manifestações no Brasil similar ao que está ocorrendo no Chile?
Há algum grau de incerteza, basta nos lembrarmos do que aconteceu em 2013.
O Brasil enfrentou manifestações de rua com milhões de pessoas em 2013, 2015 e 2016, sem nenhuma mudança institucional. Existe um fator diferente agora?
O fato de termos passado esses episódios prova que somos um país amadurecido.
O senhor enxerga alguma possibilidade de retrocesso institucional no Brasil?
Fomos repetidamente colocados à prova. Não vejo nenhum risco.
Desde o general Leônidas Pires, ministro do Exército no governo Figueiredo, os comandantes têm sido discretos. Por que o senhor foi diferente?
No final do governo militar, o Exército voltou para os quartéis, teve sua atuação de perfil bem baixo. Eu tinha preocupação de manter isso, mas me dei conta de que a sociedade e as elites estavam se desacostumando a ouvir o Exército e as Forças Armadas. Havia até um patrulhamento em relação a isso. Mas considero que é legítimo as Forças Armadas se pronunciarem para participar da discussão em tudo que diz respeito à segurança e Defesa.
O governo Bolsonaro tem muitos militares e o próprio presidente tem uma persona militar. Como fazer agora a distinção entre as Forças Armadas e o governo?
Temos que distinguir bem os militares que estão no governo do Exército. O atual comandante do Exército, general Edson Pujol, tem adotado postura muito adequada de baixo perfil. Isso faz marcar bem o espaço que existe entre governo e Exército.
O senhor concorda que, para o cidadão comum, é fácil confundir?
Algumas pessoas podem ter essa concepção que, imagino, pode aparecer no futuro numa disputa eleitoral. Mas é interessante observar que, apesar da quantidade relativa de militares no governo, ela não resulta influência direta sobre o presidente.
Na posse do comandante Pujol, o presidente Bolsonaro disse que devia a Presidência ao senhor. O senhor sente o presidente devedor de alguma forma?
Absolutamente, não. Conversamos algumas vezes antes da eleição, assim como conversei com outros candidatos para colocar questões importantes, como a Amazônia, o papel das Forças Armadas, a necessidade de um projeto para o Brasil. Eu tinha esperança que esses temas constassem do debate eleitoral, mas praticamente não houve debate. Com Bolsonaro, conversei três vezes antes da eleição. Ele interpreta como se a minha atuação tivesse sido incisiva, mas, absolutamente, acho que não.
Em 2016, o senhor foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença neuromotora de caráter degenerativo, enquanto exercia o Comando do Exército. Como foi para o senhor tornar pública uma doença que lhe incapacita quando exercia uma função tão exigente?
Quando recebi o diagnóstico, balancei se deveria continuar ou não. Mas, como tinha uma estrutura já montada, me permiti continuar. Diminuí as viagens, me dificultou estar em contato com a tropa, principalmente do pessoal operacional. Por outro lado, senti que o Exército todo se voltou pra mim no sentido de ajudar, me proteger. Do ponto de vista pessoal, eu costumo dizer que, quando Deus quer ter uma conversa particular com você, ele te dá uma doença assim. Que a gente acaba se aproximando de Deus e tem uma outra compreensão da vida. Eu tive ali. Para família, que passou a viver em função de mim, os amigos… Apesar das limitações físicas, eu me sinto muito bem. Estou penetrando em universos que não conhecia, estou me sentindo muito útil. Então, encaro tudo como sendo positivo.
O general na última década
2011
Alta patente
Promovido a General de Exército, posto máximo da carreira militar, e Comandante Militar da Amazônia (CMA), com sede em Manaus.
2015
Assume o Exército
Nomeado pela então presidente Dilma Rousseff como Comandante do Exército, em sucessão ao general Enzo Martins Peri.
2016
Momento crítico
Manifestações de rua pró-impeachment pedem também a intervenção militar. Villas Bôas cria documento interno para delimitar eventuais ações do Exército.
Comando mantido
Dilma sofre impeachment e Michel Temer assume a Presidência. Villas Bôas é mantido no cargo.
Doença revelada
É diagnosticado com a doença neurodegenerativa Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Apesar da doença, decide se manter no posto.
Clima conturbado
Os pedidos de intervenção retornam depois da divulgação de áudios de conversas grampeadas entre o presidente Temer e Joesley Batista. Em tuíte, Villas Bôas escreve: “Não há atalhos fora da Constituição”.
2018
Pressão nas redes
Às vésperas do julgamento de Lula pelo STF, o general volta ao Twitter: “O Exército compartilha o anseio de repúdio à impunidade”.
Gratidão expressa
Como comandante, se encontra com todos os candidatos. Depois de eleito, Jair Bolsonaro diz em discurso que ele era “o motivo de estar ali”.
2019
A hora da sucessão
Deixa o comando do Exército e assume como assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI).
Projeto para o futuro
Inaugura, em dezembro, o Instituto General Villas Bôas (IGVB), dedicado a apoiar pessoas que sofrem de doenças raras, como ELA.
Publicado no Jornal O Globo no dia 15/12/2019
https://oglobo.globo.com/brasil/decada-de-rupturas-fomos-colocados-prova-passamos-nao-vejo-nenhum-risco-democracia-diz-general-villas-boas-24139324
Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo