Jair Bolsonaro abriu a mais perigosa frente de batalha da sua curta gestão. Nesses primeiros oito meses, o presidente fez um governo de confronto. Contra a esquerda, os índios, os ambientalistas, a quem já havia atacado na campanha. Depois contra a mídia em geral e o Grupo Globo em particular. Provocou adversários, de Lula a João Dória e Luciano Huck. Expurgou aliados, como os ex-ministros Gustavo Bebiano e o general Santos Cruz. Inventou inimigos externos, primeiro Nicolás Maduro, depois o candidato a presidente argentino Alberto Fernández e agora Emmanuel Macron. Mas nada se compara em ousadia e risco com o emparedamento da turma da Lava Jato.
Na quinta-feira, 5, Bolsonaro indicou o subprocurador Augusto Aras para ser o novo procurador-geral da República, em um desafio aberto aos lavajadistas. Aras não concorreu na eleição interna da categoria que, na prática, permitia aos 2 mil procuradores escolherem seu chefe sem interferência do Executivo. Os presidentes Lula e Dilma indicaram o primeiro colocado na eleição interna dos procuradores, enquanto Temer indicou a segunda colocada. Bolsonaro deu uma banana às pressões do Ministério Público e aos próprios seguidores bolsonaristas.
Intervenções na PF
A escolha de Augusto Aras se soma às seguidas humilhações cotidianas ao ministro da Justiça, Sergio Moro, às demissões de chefes na Receita Federal e no Coaf e à iminente intervenção na Polícia Federal – todas para preservar seu filho senador Flávio Bolsonaro das investigações de corrupção. Na terça, 3, à Folha de S. Paulo, Bolsonaro chamou de “babaquice” a reação dos delegados da corporação às declarações dele sobre trocas na diretoria-geral. “Essa turma (que dirige a PF) está lá há muito tempo, tem que dar uma arejada”, disse. O novo diretor-geral deve ser o delegado Anderson Torres, amigo de longa data de Flavio Bolsonaro. O ainda diretor da PF, Maurício Valeixo, foi indicado por Sergio Moro.
Aqui é necessária uma digressão: sem a Lava Jato não haveria Bolsonaro. Foi o então juiz Sergio Moro e os procuradores de Curitiba que comprovaram a existência de um esquema bilionário de corrupção na Petrobras, geraram a partir das dezenas de operações um consenso nacional de que o sistema político estava apodrecido e deram a sustentação popular para o impeachment. É fato que o ambiente de antipetismo e de busca por novas lideranças poderia ter beneficiado outro nome em 2018 (Joaquim Barbosa, Luciano Huck ou o próprio Sergio Moro), mas foi Bolsonaro quem conseguiu vestir melhor o figurino da antipolítica. Quando Moro vazou parte das delações de Antonio Palocci para prejudicar o PT e depois aceitou ser ministro da Justiça a aliança entre o bolsonarismo e o lavajadismo parecia (para usar uma metáfora tão apreciada pelo presidente) um casamento para a vida toda.
Caso Flávio Bolsonaro
Agora, descobre-se que o presidente nunca pensou numa aliança, mas numa submissão. Bolsonaro queria que a Polícia Federal confirmasse a sua suspeita de que o atentado que sofreu um ano atrás fez parte de uma conspiração envolvendo o PT. A PF manteve o inquérito de que o autor do atentado é louco. O presidente se queixou abertamente de que apenas o seu ministro do Turismo estava sendo indiciado por um esquema de fraude eleitoral envolvendo candidaturas falsas de mulheres (prática mais que comum nos demais partidos). A PF deu de ombros.
Mas principalmente, Bolsonaro queria a imediata suspensão das investigações sobre seu filho e teve uma síncope ao saber que a PF havia avançado nas apurações sem que ele soubesse. A intervenção bolsonarista na PF e na Procuradoria Geral da República é um choque de comando. A PF vai perder 30% do seu orçamento para operações para 2020.
Visto hoje, o resultado parece uma vitória por nocaute do presidente. Mas não existem respostas simples para o Brasil. De todas as corporações, PF e PGR foram as que mais esticaram a corda da independência nos últimos anos. Sob Lula, a PGR apresentou a denúncia do Mensalão, acusando José Dirceu e cia. Sob Dilma, a PF prendeu quem quis no PT e a PGR impediu Lula de ser ministro. Sob Temer, a PGR grampeou o próprio presidente. Achar que será possível recuperar e guardar novamente todos os males do mundo na caixa de Pandora é de uma ingenuidade atroz.
O que Bolsonaro está fazendo é demarcar limites. Ele não se importa (ao contrário, aplaude) se a PF seguir atrás das vilezas do PT, do PSDB e das empresas da avenida Paulista. Desde que não cheguem à sua família e ao PSL. Embora quase a totalidade dos procuradores e delegados tenha votado em Bolsonaro é improvável que aceitem serem teleguiados a partir de agora, especialmente conhecendo o ponto fraco do presidente.
Mas é na política que Bolsonaro corre mais risco. Por temperamento, Bolsonaro tem feito um governo para os seus eleitores. Parte importante desse contingente votou em Bolsonaro por acreditar que ele representava os anseios do antipetismo e da luta contra a corrupção. Se houver um rompimento com Sergio Moro, com quem essa turma fica?
Fragilidade de Sérgio Moro
Olhando de perto, a situação de Moro é frágil. Ele deixou vinte e dois anos de magistratura para ser ministro e pode ser demitido amanhã. O presidente o chamou de “ingênuo” na entrevista para a Folha, ignorou seus conselhos na escolha do novo procurador geral, transferiu o Coaf para o Banco Central, constrange a PF a enterrar uma investigação e não ajuda na aprovação do projeto anticrime. Pior: sua imagem de super-homem da Justiça acabou com a Vaza Jato e ele nunca será ministro do Supremo.
Olhando com um pouco mais de distância, porém, Moro ainda tem uma enorme simpatia no eleitorado e na mídia que poucas personalidades mantêm. Pesquisa Datafolha divulgada ao longo da semana mostrou que Moro, apesar das revelações do site The Intercept sobre sua parcialidade nos julgamentos da Lava Jato, segue sendo extremamente popular. Sua atuação como ministro tem 54% de aprovação, o que só se explica pelo passado de juiz uma vez que pouco tem feito na área. Os jornais simpáticos a Moro e antipáticos a Bolsonaro fizeram longas digressões comparando os 54% de Moro ante os 29% de Bolsonaro (o que é má fé, as situações são incomparáveis). O mesmo Datafolha tentou definir quanto seriam os bolsonaristas raiz, aqueles que aceitam o que quer que o capitão diga. Chegaram a um núcleo duro de 12%.
Moro, por sua vez, tem uma relação consolidada com parte do eleitorado bolsonarista que hoje abandonou o presidente. Se o ministro deixar o governo, mesmo que seja para passar um ano sabático fora da política, quem perde é Bolsonaro. Se sair logo, Moro ainda pode ser um agente relevante para as eleições de 2022.
Foto: MPF